Desde a segunda metade de 2021, venho administrando no instagram uma página em que divulgo artes alheias chamada artes alheias. Bastante inspirada pela página da querida Luciana F. @maria.nanquim, em que ela realiza maravilhosa curadoria de artes e tirinhas/charges, passei a converter o tempo que perdia doomscrolling no meu celular em uma incessante pesquisa de arte por milhares de posts em centenas de perfis de artistas no instagram, selecionando o que acho mais interessante em artes visuais e republicando, com créditos e link para o artista.
Essa movimentação virtual, de maneira não surpreendente (especialmente para quem nasceu e foi criada dentro da internet como fui), tem me permitido conhecer artistas, galeristas e curadoras e fazer contatos e amizades que jamais teriam sido possíveis de outra forma. Fora da internet, transbordei o costume de visitar museus e virei frequentadora assídua de feiras e galerias de arte e ateliês, e venho absorvendo tudo o que posso aprender sobre o mundo da arte – um espaço que sempre orbitei, mas que apenas agora me permiti ocupar.
Mais recentemente, recebi o convite para assinar uma curadoria de arte dentro do pavilhão Metatopia, organizado pela artista e curadora Luciana dos Santos, como parte das exposições virtuais da 5ª edição da bienal de arte digital The Wrong. A partir disso, convidei dez artistas para exibirem obras que, juntas, dialogassem sobre o papel inescapável do material e do intuitivo humano na construção de tudo que é digital.
A seleção final pode ser visitada na página da exposição, em português e também em inglês. Abaixo, reproduzo o texto que escrevi para apresentar a curadoria – recomendo explorar os hyperlinks e, mais ainda, conferir a exposição diretamente 🙂
A versão em inglês segue mais abaixo ou clicando aqui!
o mundo é digital, mas alguém ainda tem que fazer o almoço
O discurso da sociedade sobre si mesma – como pensamos sobre nós e toda essa bagunça que temos montado para lidar um com os outros – está cada vez mais centrada na ideia de digitalidade. Embora tenham ficado para trás os dias de tecno-otimismo à la John Perry Barlow a respeito da autonomia do reino digital, parece que aprendemos, coletivamente, bem pouco desde então.
Embora o mundo-como-o-conhecíamos esteja visivelmente desmoronando – política, econômica, epidemiológica, se não também esteticamente – nós alegremente nos entregamos a tecnotopias futuristas, na esperança de que uma ou duas novas ficções possam tornar o mundo um lugar melhor – ou ao menos nos distrair em meio ao crescente caos.
Alguns dos maiores conglomerados de capital ao redor do mundo parecem decididos a nos convencer de que o cyberespaço (nos últimos tempos, o ‘metaverso’) é de fato o novo lar da mente humana. Quantidades astronômicas de dinheiro (e eletricidade) são gastas diariamente para fazer registros em livros contábeis digitais descentralizados, e não em qualquer coisa parecida com uma produção “material”.
Em face de todas as propagandas patrocinadas e material promocional vendendo terrenos dentro de computadores, é fácil esquecer: as pessoas ainda têm fome, e alguém ainda tem que fazer o almoço. Você não pode defumar costela de porco no metaverso (embora, para a surpresa de ninguém, mulheres ainda possam ser assediadas lá). Você (provavelmente) não poderá deleitar-se com seu amor NFT. Se servidores o suficiente caírem (ou fornecedores não forem pagos), seu macaco entediado pode virar um entediante erro 404, mas as telas a óleo de uma galeria devem conseguir resistir a ataques DDoS. Guerras cibernéticas são silenciosamente travadas a todo momento, mas apenas o bastante físico bombardeio de civis conseguiu agarrar a atenção do mundo. Trabalhar de casa durante a quarentena pode ter salvado empresas, mas destruiu nossa saúde mental ao nos privar do (verdadeiramente não-fungível) contato humano pelo que nos pareceram décadas. A linha pode subir ou descer, mas a matéria ainda importa.
A matéria também importa na presença de habilidade, escolha ou intuição humanas na criação artística, um ponto tornado explícito de diversas formas pelos artistas convidados para o mundo é digital, mas alguém ainda tem que fazer o almoço, nossa transcuradoria dentro (ou amigável invasão) da Metatopia. Tecidos, pinturas a óleo, esculturas e outras mídias tradicionais, nas mãos de Gabriel Pessoto, Bryant Girsch e QNO, ajudam a evidenciar a verdadeira estética da representação digital, sublinhando quanto trabalho nossa percepção deve realizar para que vejamos não pixels ou polígonos, mas representações de humanos e ambientes.
De forma similar, a malha poligonal visível nos curtas animados 3d de Nikita Diakur, baseados em elementos randômicos e algoritmos genéticos (meticulosamente programados por uma pessoa), não nos deixa esquecer, com humor, quanto trabalho humano ainda está por trás em fazer com que os movimentos físicos mais simples sejam viáveis em um modelo digital do espaço.
O peso do labor humano na construção do digital é duplamente frisado ao olharmos mais de perto para a exploração estética de intervenções sobre hardware: os engenheiros responsáveis por telas LCD dificilmente poderiam antecipar as potencialidades vibrantes permitidas por telas de computador quebradas, transformadas em arte por John Bumstead, agindo ao mesmo tempo como artista e curador de efeitos glitch. Tampouco – creio eu – os programadores por trás do hardware de videogames antigos (ocupados tentando preencher a tela com o máximo de polígonos tecnicamente possível) pararam para pensar em como circuit benders como Emotion.Engine_ poderiam soldar os circuitos do PS2 para atingir resultados fascinantes.
O mesmo papel curatorial é crucial no trabalho de videomakers como Deksonato and Denis Volnov, que mostram que o video moshing, como qualquer outra técnica, é em última instância dependente de decisões criativas tomadas pelo artista – sobre quais referências usar, ou em qual momento intervir. Como uma forma de comunicação, e não apenas decoração, a arte ainda requer um falante consciente.
Mesmo na era de máquinas bem educadas que podem sonhar mundos que nós nunca imaginamos, as mentes encarnadas de artistas/programadores como Vadim Epstein e Apolinário ainda são fundamentais para selecionar quais matrizes pixeladas matematicamente coerentes agradarão nossos olhos e palato. Humanos ainda são indispensáveis na criação – ou destruição – de tudo que é mais essencial para humanos. O almoço está pronto.
it’s a digital world, but someone’s still gotta cook lunch
Societal discourse about itself – how we think about ourselves and this whole mess we’ve been setting up to deal with each other – is increasingly centred on the idea of digitality. Although long past are the days of John Perry Barlow-like techno-optimism regarding the autonomy of the digital realm, it appears we have learned, collectively, very little since then.
Although the world-as-we-knew-it is visibly crumbling – politically, economically, epidemiologically, if not aesthetically, too – we gladly lend ourselves to futuristic technotopias, hoping that maybe one or two new fictions will help make the world a better place – or at least distract us amidst the ongoing doom.
Some of the largest capital conglomerates worldwide seem bent on convincing us that cyberspace (in latter days, the ‘metaverse’) is indeed the new home of the mind. Astronomical amounts of capital (and electricity) are spent daily to inscribe logs on decentralised digital ledgers and not on anything resembling “material” production.
In face of all the sponsored ads and promotional material selling real estate inside computers, it is easy to forget: people still get hungry, and someone’s still gotta cook lunch. You can’t smoke brisket and ribs in the metaverse (although unsurprisingly women can still get harassed there). You (probably) can’t relish on your NFT love. If enough servers go down (or providers unpaid), your bored ape may turn into a boring 404 error, but the oil paintings in a gallery can likely withstand a DDoS attack.
Cyberwars are quietly fought at every moment, but only the very physical shelling of civilians has really gripped the world’s attention. Working from one’s bedroom during quarantine might’ve saved companies, but crushed our mental health by depriving us of (veritably non-fungible) human contact for what felt like decades. The line may go up or down, but matter still matters.
Matter also matters in the presence of human skill, choice, or intuition in artistic creation, a point made explicit in various ways by the artists invited to it’s a digital world, but someone’s still gotta cook lunch,our trans-curation inside (or friendly invasion of) Metatopia. Woven fabric, oil paintings, sculptures, and other traditional media, in the hands of Gabriel Pessoto, Bryant Girsch and QNO, help bring to fore the actual aesthetics of digital representation, highlighting how much work our perception has to do in order for us to see not pixels or polygons, but model humans or environments.
Similarly, the polygonal mesh structure visible in Nikita Diakur’s 3d animated shorts using random elements and genetic algorithms (painstakingly programmed by a person) cannot help but remind us with humour of how much human work is still behind in making the simplest kinds of physical movements viable in a digital model of space.
The weight of human labour in crafting the digital is doubly stressed by taking a closer look at the aesthetic exploitation of hardware interventions: the engineers behind LCDs could hardly anticipate the vibrant possibilities afforded by broken laptop screens, elected to become art by John Bumstead, acting as both artist and curator of glitch effects. Nor – I believe – did the developers behind old school video game hardware (busy trying to fill the screen with as many polygons as technically possible) stop to consider how circuit benders such as Emotion.Engine_ might solder PS2 circuits to yield fascinating results.
The same curatorial role is crucial in the work of video makers Deksonato and Denis Volnov, who show that video moshing, as any other technique, is ultimately dependent on creative decisions made by the artist – on which references to use, on which moment to intervene. As a form of communication, and not simple decoration, art still requires a sentient speaker.
Even in the age of well-learned machines that can dream of worlds we never thought of, the flesh-based minds of artists/coders like Vadim Epstein and Apolinário remain key in curating what mathematically coherent pixel matrices will please our eyes and palate. Humans remain pivotal in creating – and destroying – everything that is most essential to humans. Lunch’s ready.