Este é a terceira de uma série de três publicações sobre minhas interações com o (não) cumprimento da Lei de Acesso à Informação na Universidade de São Paulo. Você também pode ler o primeiro artigo e o anterior aqui no site.
tl;dr: os bandejões tão custando caro demais, tem que ver isso aí
Eu gostaria de ter ficado mais surpreso.
Você, que estuda na USP e depende do bandejão, pode não saber, mas muito embora você pague R$ 1,90 por refeição, cada almoço (e janta) seus custam muito mais. Cerca de nove vezes mais.
Como já relatei aqui antes duas[1] vezes[2], fui atrás, no último ano, de descobrir quanto custava, de verdade, cada refeição nos bandejões da USP. Restringi minha pesquisa aos bandejões dos campi de São Paulo e, para comparação, o da USP São Carlos. Imaginava que o valor real girasse em torno de R$ 12,00 (valor pago por visitantes), mas não: na média, no mês de abril de 2014, cada refeição dos bandejões de São Paulo administrados pela SAS-USP custou R$ 17,52.
É importante frisar que esse valor (R$ 17,52) se refere exclusivamente à média de abril/14 dos bandejões administrados pela SAS-USP, que representam cerca de metade dos restaurantes que atendem a comunidade paulistana. O resto é terceirizado, e portanto administrado por empresas privadas: nestes, a média dos preços reais para abril de 2014 é de R$ 10,02.
É possível comparar a evolução de tais preços de março de 2013 a abril de 2014 nos gráficos a seguir (o valor da Física em junho de 2013 foi obtido interpolando-se os valores dos meses adjacentes, visto que o documento que recebi não fornecia este único valor):
Superintendência de Assistência Social – USP
Terceirizados
Algumas perguntas imediatamente me vêm em mente:
Qual a razão de tal diferença?
Estamos diante de uma diferença de R$ 7,50 por refeição pelo simples fato da comida passar a ser preparada e servida por uma empresa contratada para tal. Muito provavelmente, parte da diferença é devida a uma maior eficiência na administração por parte das empresas contratadas, que poderiam encontrar preços mais baixos em suas compras com maior rapidez que a SAS que, ao seguir princípios de administração pública com licitações, etc., pode ficar limitada em sua busca e, sem a necessidade de eficiência de uma empresa, acabar gastando mais do que o necessário. Outro motivo, certamente mais relevante, é o fato de os funcionários e funcionárias dos restaurantes terceirizados estarem submetidos a um regime de trabalho celetista, enquanto que aqueles que trabalham para a SAS (Superintendência de Assistência Social da USP) são profissionais concursados, com garantias e benefícios não encontrados na iniciativa privada. Por que continuamos a ter restaurantes universitários (administrados pela SAS-USP) que custam tão caro?
A iniciativa privada talvez não ofereça o melhor ambiente para seus funcionários, mas certamente custa menos ao “erário”. Se fosse possível gastar menos, tal economia poderia ser melhor gerida, sendo redirecionada a outros programas de assistência social (melhores alojamentos no CRUSP, ou aumento das bolsas-moradia, por exemplo), ou mesmo reinvestida visando ao aumento da qualidade das refeições. Isso pode passar por uma terceirização. Ou não.
Se os bandejões da SAS passassem a ser responsabilidade de empresas contratadas, teríamos, sim, uma diminuição nos gastos da USP, como podemos constatar dos valores menores exibidos acima. Mas tal diminuição não necessariamente valeria a pena. Como está exposto abaixo, há iniciativas do Governo do Estado que conseguem oferecer serviços similares por um quarto do preço – terceirizado ou público, estamos gastando errado. Terceirizar tal serviço cegamente e sem transparência alguma (como tem sido feito), por outro lado, não é a alternativa mais inteligente. Não seria hora de analisar outras?
Qual a justificativa para um preço tão alto?
Posso apenas especular. À primeira vista, me parece que o preço por refeição deveria cair à medida que a produção cresce, mas não é isto que ocorre. Com R$ 17,00 é possível comer o mesmo tanto com qualidade superior em restaurantes privados e menores dentro do campus. Os referidos gastos com pessoal podem ser um motivo, mas apontar apenas isto e sair demitindo funcionários a torto e a direito sem saber quanto de dinheiro está indo para quem e por que é jogar a culpa da crise orçamentária no lado mais fraco, sob pena de nos afundar ainda mais em ineficiência, afinal, nossos dirigentes, aqueles que escolheram para onde ia o orçamento que agora nos falta, permanecem em seus cargos, intocáveis. A quem serve um preço tão alto?
Será possível gastar menos?
Provavelmente.
Os restaurantes da Rede Bom Prato, administrados pela Secretaria de Desenvolvimento Social do Governo do Estado de São Paulo, custam R$ 4,00, dos quais são subsidiados 75%. A refeição possui qualidade e quantidade similares aos bandejões da USP, mas custa quase 25% do que custam as refeições da USP. Mas será tal serviço o melhor que a USP pode oferecer?
Efetivamente, o que ocorre hoje é que, ao pagar R$ 1,90 por refeição, você está recebendo da USP cerca de R$ 15,00 com destinação fixa: os bandejões (se você recebe a Bolsa-Alimentação, você obviamente recebe mais: R$ 17,52). Este sistema, de certo modo, não é muito diferente daquele a que está sujeito um funcionário de escritório que recebe, mensalmente, seu vale-refeição: é uma quantia que pode ser gasta apenas com alimentação. O que impede a USP, em princípio, então, de substituir (ou mesmo fazer coexistir) o sistema atual com um sistema de vouchers?
A meu ver, há um ponto essencial que obsta tal mudança: a qualidade: se a comida fosse -diariamente, e não esporadicamente- de qualidade similar ou superior à de um restaurante que cobra cerca de R$ 17,00 por refeição, é provável que muitos alunos que podem pagar alternativas mais caras passassem a frequentar o bandejão, resultando não só em um aumento de público desmedido, como em uma efetiva transferência de renda de mais pobres para mais ricos.
Se a USP passasse a oferecer vouchers para todos, e não só para os que comessem no bandejão, estudantes ricos poderiam “comprar dinheiro” e ir pagar mais barato no Sweden, e poderíamos terminar por gastar ainda mais. Por outro lado, manter tais estudantes isentos de tal benefício através de um “limite de qualidade” na comida oferecida – de modo implícito dizendo que “quem tem dinheiro não vai querer comer comida mediana” – é mais que injusto com aqueles que verdadeiramente dependem do bandejão: é discriminatório. Mesmo que se considere a comida oferecida nos bandejões “boa” ou “ótima”, por que forçar aqueles que não têm dinheiro a comer praticamente o mesmo cardápio toda semana? Os gastos sendo os mesmos, o que dá à USP o direito de escolher o que vai no prato de seus estudantes? Com um sistema eficiente de vouchers, estudantes que não têm dinheiro pra se manter alimentados poderiam, do mesmo modo, receber o subsídio que hoje a USP oferece, mas também escolher onde e o que preferem comer.
Para que tal sistema funcionasse, no entanto, seria necessário analisar de modo mais crítico quem pode e quem não pode arcar com tal ônus. Hoje, análises socioeconômicas são feitas pela SAS-USP de maneira obscura, seletiva e preconceituosa. É impensável submeter todos os alunos da USP a tal tipo de procedimento (muitas vezes vexatório) sem que tal superintendência sofra uma completa revisão de métodos e mecanismos. E aí é outra luta.
Os dados completos que recebi podem ser encontrados neste link. Aqui, os mesmos dados, passados para planilhas eletrônicas.
—
ADENDO: Eu não escrevi esse texto como um “manifesto” contra ou a favor de terceirização. Nem de vouchers. Apenas apresentei essa possibilidade e todas as ressalvas que tenho com ela. Pessoalmente, considero o modelo de terceirização atual tão ruim quanto o modelo da SAS, mas é impossível propor argumentos contra ou a favor deste ou aquele sem mais informações. É muito fácil jogar-se nos braços da terceirização apenas pelo seu aparente custo mais baixo (novamente, mais baixo apenas em comparação ao que já é muito caro, o que não significa muita coisa), e ignorar que possivelmente seus funcionários estejam submetidos a situações de trabalho ruins. Mas também é muito fácil apontar isso e ignorar que há muitos funcionários e funcionárias nos restaurantes da SAS sofrendo com LER, psoríase, estresse e trabalhando feito condenados. A terceirização não é o melhor que podemos ter, e nem o é a SAS. Há muito mais variáveis a serem consideradas, e qualquer discussão sobre este assunto, a meu ver, deve passar sobre se é papel de uma Universidade pública prover empregos à população (falo aqui de novas contratações, obviamente) apenas para “salvá-los” da iniciativa privada, ainda que a custo de possível ineficiência e gastos desnecessários.
EDIT 25/11/2014 – Após minha pesquisa, o Estado de São Paulo publicou uma matéria sobre esse assunto, que pode ser lida clicando aqui.