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18/08/2020

A verdade está morta. Viva a verdade?

Em agosto de 2019, participei do IV Encontro de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de São Paulo. Como parte da Mesa 17, intitulada “Ciência e pós-verdade“, apresentei reflexões iniciais de uma pesquisa que venho desenvolvendo sobre epistemologia e senso comum. O texto completo da comunicação foi publicado no caderno de resumos do encontro, e o reproduzo na íntegra a seguir. Antes, uma breve introdução aos meus objetivos com esta pesquisa.

Em poucas palavras, argumentei que se queremos resolver problemas de assimetrias informacionais na escala da sociedade – problemas que hoje assumem rótulos como “fake news”, “pós-verdade”, “sociedade da desinformação”, etc. – precisamos olhar não só para como a cognição de um indivíduo “aprende” o conhecimento que for (o foco da epistemologia tradicional em filosofia analítica), mas também para as operações que dão forma aos diversos sistemas sociais pretensamente responsáveis pela produção de ‘verdades’. Precisamos entender, com o auxílio das ciências sociais, o funcionamento complexo de práticas como o direito, a política e a ciência e, em particular, o jornalismo, práticas cujas comunicações tanto determinam quanto possibilitam nossas crenças cotidianas sobre o que é ou não de fato “verdade”.

É preciso, sim, atentar-se à epistemologia (e quiçá, “naturaliza-la” com o auxílio das ciências cognitivas, mas sem apagar a fenomenologia), mas só é possível aprender certo tanto sobre bolhas de informação ou relativismo linguístico usando Gettier. Necessária uma consideração honesta do que a sociologia, antropologia, ciência política, economia (e outras áreas afins, como estudos de mídia) têm a dizer sobre a formação e transmissão de crenças por pessoas socialmente situadas, i.e. uma consideração do que de fato se passa por “verdade” entre cientistas, juízes, políticos e jornalistas.

Mais que isso, é preciso abordar esta epistemologia levando a sério a experiência fenomênica, em primeira-pessoa, do indivíduo, fornecendo explicações científicas que não se limitem à perspectiva de terceira-pessoa típica da ciência – e aqui podemos buscar o auxílio de pesquisas em linguística cognitiva, cuja produção sobre metáforas é capaz de fornecer uma ponte entre a compreensão epistemológica do indivíduo e do macro-social mencionadas acima, e também entre as perspectivas de primeira-pessoa (na qual vivemos!) e terceira-pessoa (na qual escrevemos ciência – a este título, cf. The Embodied Mind, de Varela et al.).

Sem mais delongas, segue o texto da comunicação – infelizmente não tão claro quanto eu gostaria, mas eis uma verdade da pesquisa: se o sentido é uma construção, rascunhos como este são suas vigas e tijolos.


Confrontados com o ambiente crescentemente complexo e confuso de uma sociedade funcionalmente diferenciada (Luhmann, 1992) que continuamente produz mais e conflitantes informações, frequentemente nos encontramos saturados e incapazes de atingir conclusões inequívocas sobre assuntos centrais a nossa própria existência. Argumento que a epistemóloga contemporânea interessada em compreender a verdade e a atual crise social relativa a tal ideia é forçada a considerar tanto

a) os sistemas sociais envolvidos em produzir, utilizar e disseminar “fatos” através de atividades complexamente inter-relacionadas, como a ciência, o direito, a política e, em particular, a mídia, com sua construção de nossa visão comum destes e de outros sistemas, quanto

b) a própria epistemóloga, enquanto cognição individual com limitações
práticas sobre seu conhecimento, emergida através do acoplamento de um corpo situado em específicos ambientes naturais, sociais e linguísticos, que ao mesmo tempo possibilitam e restringem seu vocabulário teórico/conceitual, métodos, objetivos/ motivações e (possíveis) conclusões.

Em outras palavras, parece ser o caso que uma análise da crise da “verdade” hoje requer uma apreciação da construção social do senso comum (no sentido de ser comum, ou intersubjetivamente verdadeiro, para o máximo de pessoas possível) através de comunicações em certos – e entre diferentes – sistemas sociais e, voltando esta reflexão de volta a si própria e a sua própria produção de teoria (verdadeira?), a epistemóloga é levada a considerar sua própria posição epistêmica (como ela “sabe” a que ela própria descreve sobre esta “construção social da verdade”?) situada entre pares (a quem ela se dirige? para quem é a teoria?).

A ciência, um dia apresentada como um sistema produtor de verdades (ou des-provador de falsidades), via procedimentos como o método científico e princípios de verificabilidade através de reproducibilidade, revisão por pares, etc., que presumivelmente deveriam funcionar para de alguma forma – com a ajuda da filosofia, de acordo com o pensamento analítico Quineano – separar “verdade” de “falsidade”, é percebida como uma fonte de de afirmações contraditórias e inconclusivas, permanentemente sob risco de “refutações” ou acusações de “ideologia” ou “interesses ocultos” motivados por princípios não-científicos como controle ilegítimo via financiamento de pesquisa enviesado – exemplos extremos disto são movimentos em voga como terraplanismo ou anti-vacinação e sua desconfiança da ciência e suas instituições circundantes, outras menos extremos são a desconfiança pública relativa à segurança de tecnologias como OGMs ou agrotóxicos, e eventos como o “escândalo Sokal”.

O direito, com sua pretensa equidade de procedimentos previsíveis e normas gerais (e.g. “devido processo legal” ou “proporcionalidade”1E.g. ALEXY R., (2002a) A Theory of Constitutional Rights, Oxford: Oxford University Press.), supostamente garantidos por “direitos constitucionais” de petição, informação ou expressão, e outros “princípios fundamentais” do “império da lei”, é a despeito disso amiúde representado por esquerdas e direitas como como uma ferramenta dos (alternativamente política, econômica ou “culturalmente”) poderosos, operando sobre fabricações que não apenas “distorcem” a realidade para ocultar interesses ilegítimos (e.g. as acusações de “golpe” contra o processo de impeachment de 2016 e a investigação Lava-Jato), que de toda forma talvez sejam inevitáveis dada sua estrutura de suas instituições (e.g. via a construção cotidiana da realidade jurídica pelas interações contingentes de policiais e outros agentes institucionais com clientes e sua seleção de casos e investigações2Cf. e.g. Lipsky, M. (1980). Street-level bureaucracy: Dilemmas of the individual in public services. New York: Russell Sage Foundation.)).

A política representativa, apresentada pelo pensamento liberal clássico como uma arena para o debate aberto de visões conflitantes e a construção de consensos viáveis e justos,3Cf. e.g. Mill, J. S. (1991). Considerations on representative government. Buffalo, N.Y: Prometheus Books. permitiu o ressurgimento global de lideranças populistas reacionárias e quase-fascistas, sem receio de negar o que já foram “fatos estabelecidos” e recriar a realidade social para conformá-la a suas próprias verdades relativas a direitos, causação social ou a operação do Estado na sociedade.

No centro de nossa construção cognitiva desta situação está a mídia de massas, fundamentalmente alterada pela ascensão de mídias sociais de massa e relativa queda da mídia impressa e da TV. Especificamente, aponta-se para uma crise no jornalismo relativa à sua função de construir uma memória (consensual) coletiva dos eventos da realidade. O que um dia foi “verdade” tornou-se “opinião”, em múltiplos sentidos, e.g.:

i) “fatos” jornalísticos são fabricados diariamente a partir de declarações (de “figuras notáveis” como comentadores políticos, parlamentares, e “especialistas”) que se tornam realidade na forma de citações em manchetes (independentemente da veracidade do conteúdo da declaração – e.g. o “kit gay”, ou a ocorrência ou não de um “crime de responsabilidade” durante o processo de 2016) e que são depois confirmados ou desconfirmados também por reportagens – frequentemente na forma de “checagem de fatos”, termo que apenas reforça a sugestão de que o resto do jornalismo não trabalha “checando fatos”, mas produzindo comunicações acerca do que observa e crê possuir conteúdo “informacional”. “Opinião” assim se torna “verdade”, ao menos na medida em que qualquer elocução pode ser transformada em informação por uma reportagem e se tornar disponível como “fato” para reação pública.

Assim, ii) o jornalismo atrai suspeitas contra si, e o que quer que reporte é visto alternativamente como reflexo de seu viés liberal ou conservador, ou mesmo fascista ou comunista, e – copiando aceleradamente o velho modelo dos EUA – estimulando a emergência de mídias mais “críticas” ou “abertamente políticas” de variedades mais ou menos extremas (i.e. das páginas relacionadas ao MBL ou o Brasil247 ao HuffPost Brasil e O Antagonista), reforçando a crença de que não existe qualquer coisa como uma notícia “apolítica”, e portanto de que a única resposta aceitável é “tomar um lado” para suas fontes informacionais – ou, pelo contrário, consumir mídias de tantas fontes quanto for possível – uma alternativa que não parece frutífera e pode bem levar à loucura.

Além disso, iii) “fatos” científicos ou intelectuais, digeridos pela mídia em sua tradicional forma tópica – i.e. por referência a artigos, livros ou posições (polêmicas) de autores individuais, ao invés de a revisões de literatura, meta-análises, e outras formas de construção de consenso em comunicações acadêmicas -, passam a ser vistos como altamente “contaminados por ideologia”, criando a possibilidade de negar validade a qualquer ciência que “não se pode confiar”, também criando pressão para que se “escolha um lado” de forma a filtrar a aparente cacofonia de comunicações científicas (uma tarefa que a mídia “política” está sempre feliz em cumprir via “jornalismo científico”).

Longe de “culpar” a mídia por distanciar-nos da “verdade verdadeira”, uma análise cuidadosa da realidade atual deve compreender que a política, a ciência e o direito são sistemas complexos de comunicação, inevitavelmente indutivos de dissenso/pluralidade em sua atividade sincrônica diária, a despeito de qualquer estrutura interna e estabilidade que possam produzir diacronicamente (pela perenidade de paradigmas científicos, doutrinas jurídicas, e outros comportamentos institucionalizados), e deve considerar os efeitos do desenvolvimento desta (muitas vezes opaca) complexidade estrutural interna sobre a tarefa, posta perante nós hoje, de pessoalmente “checar nossos fatos”.

Face a tal cenário, que conclusões podem ser tiradas pela epistemóloga, interessada no estatuto e papel da verdade tanto quanto qualquer outro buscando tomar “decisões informadas”? Como uma análise do estado atual e função de, e relações entre, ciência, direito, política e jornalismo, e sua criação, uso, e troca de “fatos” entre si, de um lado, e um olhar à nossa posição individual enquanto leitores/consumidores de informação, do outro lado, pode iluminar a discussão relativa à possibilidade de “verdade” em nossas sociedades crescentemente politicamente polarizadas? Recorrendo à teoria social de de Niklas Luhmann e estudos em metáfora em linguística, busco explorar estes temas sem, necessariamente, visar a “verdade”.

Notas

Notas
1 E.g. ALEXY R., (2002a) A Theory of Constitutional Rights, Oxford: Oxford University Press.
2 Cf. e.g. Lipsky, M. (1980). Street-level bureaucracy: Dilemmas of the individual in public services. New York: Russell Sage Foundation.
3 Cf. e.g. Mill, J. S. (1991). Considerations on representative government. Buffalo, N.Y: Prometheus Books.
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