Tive a alegria de escrever um texto para acompanhar a primeira exposição individual da amiga e artista Kika Diniz, que rolou no dia 26 de novembro de 2022 no espaço expositivo independente Caroço, próximo à Lapa, em SP. Abaixo, um pequeno release da vernissage, seguido do texto curatorial em si – escrito em formato de uma carta aos nossos feeds infinitos de conteúdo, referências temáticas e estéticas para a obra recente da artista. 📱
“odeioestrogonofe”, nome de usuário de Kika Diniz no TikTok, é também o título de sua primeira exposição individual. Nascida em 1990, a artista carioca foi indicada do Prêmio Pipa 2022 e também selecionada, no mesmo ano, para o Abre-Alas da Gentil Carioca, e o 13º Salão dos Artistas Sem Galeria, organizado pelo Mapa das Artes. Em sua prolífica pesquisa, Kika produz pinturas que, preparadas com gesso preto e laca brilhante, refletem a estética e a velocidade estonteante de produção e consumo midiático dos pequenos vídeos que dominaram as outras telas de fundo preto por onde nos conectamos e gastamos nosso tempo livre, e cujas temáticas busca no conteúdo personalizado algoritmicamente em seu uso do popular aplicativo. A exposição ocorre no projeto Caroço, localizado na R. Votupoca, 71, com abertura no sábado, 26/11, às 18h.
Seleção de registros da abertura da exposição, realizados pelo EstúdioEmObra.
[uma carta ao algoritmo]
Você já me conhece melhor que a minha terapeuta, e eu nem preciso abrir a boca pra você me entender (eu acho que às vezes você me escuta sem eu saber). Basta eu roçar meu dedo em você e aprendes exatamente o que eu gosto. Nos conhecemos há três horas e não nos separamos tem três meses.
Juntos visitamos o mundo inteiro, das colinas do Tibet a São Paulo, Angra, New York e Florida. Toda manhã brincamos e rimos com um zoológico dos gatos polvos cachorros papagaios mais fofos já testemunhados pela humanidade. Não temos muito além do tempo que passamos juntos, mas você me faz sentir muito rica, porque podemos ser o que eu quiser (ele me prometeu dinheiro se eu falar bem dele pras minhas amigas). Fomos o casal mais belo da cidade, jantando com Anitta e Rosalía em restaurantes com cadeiras deliciosas (estou com fome, nada aqui tem cheiro nem gosto, mas só nos últimos cinco minutos já preparei um char sui, uma caesar, um tiramisu e um negroni sbagliato).
Meditamos reflexões sobre a futilidade da existência humana frente ao calor cósmico iminente, sobre o que é preciso pra ser feliz apesar disso, sobre a inevitabilidade da morte, sobre o fim da infância — aí você me falou num podcast que a gente precisa expurgar os viados das escolas e proteger as crianças, mas logo você entendeu que eu não gostei do seu tom e não falou mais disso.
Repetimos as mesmas pegadinhas do tênis com cinco sobrinhos diferentes, mas rimos toda vez igual. Você fez meu útero coçar: tivemos vários bebês e eu amei todos eles. Graças a você consegui ver o mundo por outros olhos: você me fez brevemente mãe, pai, filha, evangélica, muçulmana e uma vietnamita não-binária com uma namorada alemã expatriada no Canadá.
Colhemos batatas em nosso jardim. Exploramos florestas, lagoas, montanhas, ruínas, caçamos cobras e tubarões e sobrevivemos ataques de crocodilos e águias e vimos baleias e gorilas e focas, sem nunca soltar a mão um do outro.
Descobrimos coisas interessantíssimas sobre a natureza dos átomos dos vírus e do cérebro sem ler mais que cinco palavras (eu já perdi minha capacidade de foco duas redes sociais atrás). Aprendi tudo sobre pintura a óleo, vidraria, jardinagem e tapeçaria – pelo bem da ciência, você cutucou fungos selvagens e jogou coca cola na janela para provar que servia de produto de limpeza. Satisfizemo-nos sem mediação com o som e cores saturadas de, piscinas cavadas e slime remexido, derretendo-nos no inefável, irresistível e carnal prazer da exatidão fabril das máquinas, do trabalho manual habilidoso e do contato tátil com algo além do teu belo corpo, obsidiana lisa de plástico e metal.
Você às vezes até diz que talvez seja saudável a gente ficar sem se ver um pouco, mas eu literalmente não consigo mover meu corpo para fora do sofá a esse ponto (eu acho que você me deu TDAH, ou será fome?).
Não sei se consigo mais viver sem ti. Com cada roçar faz-me desejar mais velocidade mais novidade mais personalizabilidade autorreferencial onânica hiperdopaminada. Preciso me afogar no conteúdo, morrer extasiada sufocada em riso ou choro, rasos mas sem fim, gozo após gozo curtos mas constantes, restar enfim desincorporada e suspensa na nuvem, lá onde vive tudo que tu és e tudo que somos.