A convite do diretor da Biblioteca Mário de Andrade, Jurandy Valença, concebi em 2024 o projeto CONSTRUO ASSIM MINHA PRÓPRIA CARNE, exposição coletiva de artes visuais pensada para se enquadrar nas atividades da biblioteca em comemoração aos 100 anos do Manifesto Surrealista.
A exposição trouxe obras de três artistas: Aun Helden (@aunhelden), acompanhada de Marcelo Gerab (@marcelogerab) no som, apresentou performance cuja pesquisa pode ser resumida na seguinte questão: o que resta quando recusa-se a mulher à aspiração por um corpo nos moldes da hiperfeminilidade esperada pela hegemonia cisnormativa? Sansa (@sansa______) expôs sua estréia no suporte escultórico, no qual explora a mesma pergunta, em sentido inverso: que pesadelos são incorporados quando aceitamos tornarmo-nos a imagem extrema das expectativas dominantes sobre o corpo feminino? Por fim, Nuno Q. Ramalho (@nunoqramalho) expôs pela primeira vez em São Paulo seu trabalho em mural, em recorte que explora a relação entre o anamorfismo de suas imagens – projetadas para transbordar a planitude das paredes – e a dismorfia corporal que com frequência motiva a corrida incessante rumo ao devir-monstro, sobretudo masculino, observado em subculturas fisiculturistas.
Abaixo, o texto curatorial que produzi, bem como alguns registros fotográficos da exposição por Victor Galvão e Jana Cavalli.
CONSTRUO ASSIM MINHA PRÓPRIA CARNE explora as interseções e divergências entre diversas práticas de construção sócio-bio-tecnológica do corpo que, ao rejeitar um conceito de naturalidade como aceitação passiva das condições de formação dadas pela sorte, passa a tomar as rédeas de seu desenvolvimento, atualizando em sua estrutura física a virtualidade imaginada por si próprio. Do bombeamento de silicone industrial no esculpir do corpo histórico travesti à injeção de synthol no fluffing bodybuilder, passando pelo uso de intervenções cirúrgicas e hormônios sintéticos para anular ou reforçar a expressão corporal de gênero, criando e destruindo conscientemente seus próprios músculos, gordura e ossos, tais práticas materializam igualmente sonhos e pesadelos da carne.
Ícaros quiméricas, tateamos o Sol imperatrizes de nossas próprias células. O estradiol que engulo reprograma minha expressão genética, fazendo florir fertilidade peito e bunda onde antes apenas vontade ou fantasma. A testosterona que injeto me enrijece os deltoides, bíceps, tríceps e quadríceps, faz-me flecha, punhal, porrete preciso. O aço que elevo me traz vida e foco; o devir-monstro suspende a binariedade. Nem homem, nem mulher: tormento.
Nada mais antinatural que ser humano; desejar algo além do dado. Nada mais humano que desejar o nada – deitar-se para o requiem final, livrar-se da carcaça carniçal, reduzir-se a puro cálcio e fina camada epidérmica, buraco negro que dá um nó sobre si antes de se autoconsumir e sumir, deixando para trás apenas o contraditório som do vácuo. E um pouco de pó.
Expando; contraio. Encontro lar em minha onírica encarnação.
Ficha técnica:
PRODUÇÃO E CURADORIA Alice Granada
EXPOGRAFIA Flau Doudement
IDENTIDADE VISUAL Bea Oliveira
APOIO Biblioteca Mário de Andrade e Atelier Jurídico
- o que eu fiz produção e curadoria