O que pode um corpo?
No dia 1º de junho de 2023, abrimos na Galeria Cândido Portinari, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) a exposição coletiva 𝑺𝑨𝑮𝑹𝑨𝑫𝑶 𝑨𝑩𝑱𝑬𝑻𝑶. Minha primeira curadoria (presencial) autoral, dividida com Diogo Santos, professor e coordenador de exposições da UERJ, a exposição contou com a participação de doze grandes nomes da arte contemporânea brasileira de SP, RJ e Brasília – Flávia Ventura, Níke Krepischi, Nuno Q Ramalho, Luisa Callegari, Sansa Rope, Márcia Falcão, Fernanda Azou, Fava da Silva, Renan Teles, Marlon Amaro, Carolina Melgarejo e Gabriella Barbosa.
Além de pinturas e instalações, a exposição apresentou também duas performances. Em Antropomorfa, de Sansa Rope e Luísa Callegari, técnicas de shibari foram utilizadas para suspender no teto da galeria o corpo da performer que, coberta de material vinílico rosa, era fundida a próteses de silicone rosa simbolizando a expansão das possibilidades de expansão do prazer sensorial – ressaltando o erótico na constrição, na dominação e na servidão – temas centrais da exposição. Em “We know your kink, Brazil, our statistics don’t lie” ou “Um quarto só seu”, o público se viu na condição de voyeur: oculta por detrás de telas plásticas semi-transparentes, Níke Krepischi realizou performance transformando cabos de facas em consolos, ao mesmo tempo seduzindo e aterrorizando. Apesar da proximidade física com o público, este foi forçado a assistir à apresentação online, ao vivo, em um site de camgirls utilizado pela performer, deslocando a vulnerabilidade da performer para o público, que se via instigado a transitar (digitalmente) por espaços tipicamente estranhos à sanitização de um espaço expositivo. Fruidores da exposição se viam lado a lado ao público online da apresentação – majoritariamente composto de homens cis brasileiros, o maior público consumidor de pornografia contendo corpos transgênero no mundo, que, alheios ao caráter duplo da apresentação assistida, viam no anonimato da caixa de comentários do site tela em branco para depositar seus desejos e pedidos.
Obrigada a todos os artistas e performers, mas especialmente, aqui, a toda a equipe do Departamento de Cultura da UERJ, incluindo os bolsistas, que foram os grandes responsáveis por ajudar a viabilizar essa exposição que é, sem exagero, a realização de um sonho nascido desde que comecei a ser atravessada pela arte.
Abaixo, algumas fotos da abertura da exposição, bem como o texto curatorial que escrevi.
SAGRADO ABJETO
A mesma carne que, pulsante, sorri e ama e cativa seus pares passa, putrefata, a causar repulsa aos que próximo respiram. A morte opera como uma de várias pontes entre o Sagrado – o sopro da vida – e o Abjeto – matéria orgânica em decomposição.
Não à toa criamos elaborados rituais para tornar toleráveis a inexorável existência do cadáver: enterramo-nos, queimamo-nos, lançamo-nos ao mar de modo a nos livrar por ora do memento do que a todos nós aguarda, na esperança de com isso separar da Alma sacrossanta a carne pecadora.
Diversas outras práticas, fenômenos e conceitos cumprem este mesmo papel. A mitologia cristã eleva o instrumento da tortura de seu mártir ao posto de ícone máximo do Sagrado. A crença na legitimidade reveste a arma do algoz com o véu da justiça, purificando a violência executada em nome do Poder. O fogo, destruidor, se bem cuidado transforma o cru patogênico em cozido nutritivo, fonte da Vida.
A prática artística, catártica e sublimativa, manifesta poder similar, através do qual os artistas de SAGRADO ABJETO, com óleo e gesso e corpo e luz, transfiguram o trauma da vida, em corpos e espaços tidos por torpes, em celebração estética do gozo desviante – o erotismo, afinal, bem reflete a amplitude da capacidade humana para transmutar tudo que nos repugna nos corpos e relações humanas em objeto de adoração:
dos fluidos que de nós escorrem aos pés imundos que nos carregam,
do sadismo ao masoquismo,
do mando impiedoso à obediência servil,
tudo que ao leigo suscita repulsa parece apto a ser convertido, em ritual apropriado pelo fiel desejoso, em símbolo do divino.
Livres das amarras do Pai psicológico, social, existencial, abraçamos a rejeição que dele nos torna alheios, encontrando em nós mesmos todo o necessário para nossa própria consagração, fundindo-nos enfim, em Sagrado Abjeto, Abjeto Sagrado.
- o que eu fiz curadoria: seleção de artistas e obras, expografia e texto curatorial
- data junho de 2023