Mais ou menos no decorrer dos últimos três anos, comecei a entrar em contato com conteúdos (livros, textos, filmes, vídeos, etc.) que, ainda que tratando de assuntos (aparentemente) não relacionados, pouco a pouco contribuíram para que eu desenvolvesse minhas ideias, crenças, posições e percepção do mundo e dos humanos que o habitam. Inicialmente, li uma introdução básica, acessível (mas muito boa) a filosofia política, com Justiça, de Michael Sandel. Depois, com A Ideia de Justiça, de Amartya Sen e diversas outras fontes,1Das quais não vou me lembrar separadamente, mas que incluem, por exemplo, desde O Estrangeiro de Camus a Lessig e outras coisas envolvendo Direito e Internet. pude entender melhor o que está envolvido quando falamos em “justiça,” “igualdade,” “equidade,” e outras ideias tão caras a nós, mas que frequentemente usamos sem refletir mais profundamente – o que dá origem a intermináveis discussões políticas improdutivas: a falta de base teórica ou filosófica não impede conversas frutíferas, mas as dificulta tremendamente.
Ao mesmo tempo, fui descobrindo (também graças a Heloisa Bianquini e Vinicius Seneda) um pouco mais sobre psicologia, filosofia, antropologia e sociologia. Longe de tomá-las como disciplinas isoladas, contudo, passei a enxergar como cada uma delas contribuía, de forma complementar, para uma compreensão mais robusta e completa da realidade.2Na verdade, a separação rígida entre áreas do conhecimento que vivenciamos hoje no Brasil é, na minha opinião, um dos maiores obstáculos ao avanço científico-intelectual, político e social do país (e do mundo).
Com a psicologia, aprendi sobre como o comportamento humano é muito menos ‘racional’ do que parece, e tive os primeiros vislumbres sobre como o desenvolvimento cognitivo/mental acontece nos seres humanos (e outros animais). Bem próximo a ela, o que (ainda pouco) tenho lido sobre ciências biológicas como um todo, em especial as neurociências e farmacologia, com implicações diretas para a forma que concebemos a origem de nossas vontades, pensamentos, valores e julgamentos, e a nossa própria ideia de consciência e identidade pessoal.
Ler (e assistir) sobre antropologia me permitiu sobretudo entender a extensão do que é relativo. Descobrir como seres humanos podem ser diferentes em seus rituais, crenças, modos de se apresentar, se portar, se relacionar, de pensar, de conceber o mundo e seu papel nele de formas tão radicalmente diferentes da Ocidental, contemporânea, “civilizada” e “capitalista;” descobrir, em suma, que existem outras formas de existir tão diversas que muitos de nós, quando confrontados com elas, como um tipo de instinto de auto-preservação identitária, negamos a elas o mesmo tipo de status que damos a nós mesmos, qual seja, de racionais, mais inteligentes, mais livres. Nada mais infundado: conhecer o outro e reconhecer nossas diferenças com ele é, também, conhecer a si próprio. É notar como nós, também, fomos ‘formados'3Palavras são coisas complicadíssimas. Falar que somos “formados” não deixa de ser uma fala metafórica, que remete a algo que é, como uma massa disforme, moldado por uma forma, como um bolo ou pudim. Não é essa a ideia que quero passar aqui. pelo ambiente ao nosso redor desde o nosso nascimento, de nosso idioma nativo até nossos costumes, valores morais e obediência (ou não) a eles. De fato, nossa noção de consciência é formada através da interação coletiva com outros seres humanos.
O que me leva à linguística, sobretudo a variedade cognitiva: a forma que raciocinamos é movida, ou justificada, em geral, usando palavras, por meio da comunicação com outras pessoas. A forma que organizamos nossos pensamentos e criamos categorias dentro das quais encaixamos tudo ao nosso redor (e sua variedade cultural) são algumas das coisas que mais me atraem aqui, e que são inseparáveis das outras disciplinas de que falo aqui – e que, cada uma a sua parte, servem como lembrança constante de que nós preexistimos as palavras que usamos para descrever nossa experiência.
É claro, não é possível diminuir a relevância da filosofia nesse assunto, sobretudo o que hoje chamam de filosofia da mente. Da tradição budista aos gregos, e desses até a tradição moderna e contemporânea, com a virada de Descartes, a filosofia de todo lugar e época se ocupou de entender como funciona nosso pensamento. Em especial, tenho me interessado por filósofos mais recentes, como Putnam, Nagel ou Rorty, e suas contribuições às noções de objetividade/subjetividade, ligadas diretamente à forma que percebemos e fazemos sentido do mundo e, portanto, ligadas à ciência cognitiva em geral. Mas a filosofia perpassa e habita praticamente todas essas outras áreas, não há como tratar da mente sem que se trate dos mesmos assuntos que a filosofia chama de ‘ontologia’ ou ‘epistemologia,’ por exemplo.
Não foi até alguns meses atrás, no entanto, após ler The Tree of Knowledge,4Disponível agora numa bela edição em português. dos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana, e descobrindo então que um dos temas unificadores de todas essas disciplinas5Um dos temas, pois o outro, teoria de sistemas – ou o “pensamento sistêmico,” herdeiro da cibernética que, veja só, também deu à luz a ciência cognitiva -, é um capítulo à parte, embora estreitamente relacionado a esse. Tanto teoria de sistemas e ciência cognitiva, eu gosto de pensar, se valem de quantas disciplinas for relevante para compreender seus objetos, e então podem englobar disciplinas muito além das que eu cito aqui, é óbvio, como sociologia, ciência política, física, computação, enfim. é o que se costuma chamar de ciência cognitiva.
É a convergência dessas e outras áreas em busca da compreensão da cognição (humana e diversas outras) que tem sido meu objeto de atenção nos últimos tempos. Sobretudo, me interessam as implicações dos achados e teorias desenvolvidas nesses campos sobre áreas como as relações humanas, o processo de aprendizagem (e logo a educação), a organização e interações sociais, e até a exploração direta da consciência e da mente. Do ponto de vista acadêmico, até mesmo por estar inserido em uma graduação em Direito, as consequências políticas e morais desses assuntos me atraem particularmente. Por exemplo, as noções tradicionais de livre-arbítrio6Por exemplo, o trabalho da neurofilósofa Patricia Churchland, ou a visão mais radical de quem nega a própria ideia de livre-arbítrio, como Sam Harris em Free Will. Pessoalmente, estou mais convencido (por diversas razões) de algo similar ao que é descrito nesse texto de Gregg Caruso: Experience and Autonomy: Why Consciousness Does and Doesn’t Matter., identidade, vontade, altruísmo/egoísmo, individualidade, natural/construído, biológico/social, igualdade/diferença e outras, que tomamos muitas vezes como óbvias e dadas, são profundamente questionadas (senão, destruídas e tornadas sem sentido) quando aprendemos mais sobre o que somos.
No mapa acima, é possível visualizar as três “ondas” da ciência cognitiva ao longo do tempo, do cognitivismo, com foco na ideia de cognição enquanto interpretação de informações e resolução de tarefas; o pensamento emergente (ligado ao conexionismo), que focava na cognição enquanto fenômeno emergente; e o enactivismo, voltado à forma que a cognição (e nossa percepção de mundo) surge a partir da interação contínua entre organismo e ambiente. O cenário real do campo é mais complexo que isso, é claro, mas é uma divisão útil para se ter em mente.
Da outra metade desse assunto, o pensamento sistêmico, pretendo falar em outra ocasião.
Em alguns parágrafos, é isso que tem me movido nos últimos meses, e é no que pretendo focar meus esforços e estudos no futuro. Com isto em mente, tenho aumentado meu ritmo de leitura consideravelmente e, porque é um bom hábito, tenho mantido registros das minhas impressões dos livros que leio para consulta posterior, e publicando-as na rede social de literatura Goodreads. E porque parece uma boa chance de me forçar a publicar mais coisas por aqui e, quem sabe, aumentar o interesse de outras pessoas por esses assuntos que, francamente, têm mudado minha vida, decidi passar a re-publicá-las aqui, traduzidas em português. Este mesmo post era para ter sido a primeira dessas, mas a introdução que decidi escrever para contextualizar a tradução ficou, como é possível ver, um pouco longa.
Além disso, tenho mantido uma lista de livros relacionados (segundo um critério de interesse pessoal) aqui, e uma lista de (excelentes) vídeos ligados a isso tudo aqui.
Nos próximos dias, volto com a primeira “review”: Vehicles, de Valentino Braitenberg, um livro sobre “experimentos em psicologia sintética.”
Até breve!
- Foto de capa: “Map 42: The Synergistic Mind: Buckminster Fuller, Ruth Benedict and Abraham Maslow,” de Maps of the Mind (1982), de Charles Hampden-Turner.
Notas
↟1 | Das quais não vou me lembrar separadamente, mas que incluem, por exemplo, desde O Estrangeiro de Camus a Lessig e outras coisas envolvendo Direito e Internet. |
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↟2 | Na verdade, a separação rígida entre áreas do conhecimento que vivenciamos hoje no Brasil é, na minha opinião, um dos maiores obstáculos ao avanço científico-intelectual, político e social do país (e do mundo). |
↟3 | Palavras são coisas complicadíssimas. Falar que somos “formados” não deixa de ser uma fala metafórica, que remete a algo que é, como uma massa disforme, moldado por uma forma, como um bolo ou pudim. Não é essa a ideia que quero passar aqui. |
↟4 | Disponível agora numa bela edição em português. |
↟5 | Um dos temas, pois o outro, teoria de sistemas – ou o “pensamento sistêmico,” herdeiro da cibernética que, veja só, também deu à luz a ciência cognitiva -, é um capítulo à parte, embora estreitamente relacionado a esse. Tanto teoria de sistemas e ciência cognitiva, eu gosto de pensar, se valem de quantas disciplinas for relevante para compreender seus objetos, e então podem englobar disciplinas muito além das que eu cito aqui, é óbvio, como sociologia, ciência política, física, computação, enfim. |
↟6 | Por exemplo, o trabalho da neurofilósofa Patricia Churchland, ou a visão mais radical de quem nega a própria ideia de livre-arbítrio, como Sam Harris em Free Will. Pessoalmente, estou mais convencido (por diversas razões) de algo similar ao que é descrito nesse texto de Gregg Caruso: Experience and Autonomy: Why Consciousness Does and Doesn’t Matter. |